9 de junho de 2012

A Democracia da Decoreba

Por Cláudio de Moura Castro


As leis da natureza podem ser cruéis. O preço do sucesso aqui pode ser o fracasso ali. Em meados dos anos 70, peritos da Fundação Ford ajudaram a reformular o vestibular do Quênia. Tornaram as provas mais inteligentes e criativas, buscando testar aquilo que realmente correspondia a uma boa educação. Obviamente, reforçaram perguntas de raciocínio e reduziram o número daquelas que apenas testavam a memória ou refletiam aspectos culturais. É isso que cabe fazer, pois estudamos para a prova. Se a prova é boa, estudamos coisas boas. Mas eles esperavam também que as provas ficassem mais justas, dando melhores oportunidades àqueles de origem mais modesta. Surpresa! Comparadas com as anteriores, as novas provas distanciavam ainda mais os ricos dos pobres. Pouco tempo depois, orientei a tese de mestrado de uma moça que havia estudado com Piaget. Ela estava indignada com a injustiça trazida pelos testes de inteligência aplicados pela Secretaria de Educação, pois exigiam conhecimentos factuais e normas culturais, não apenas raciocínio e capacidade mental. Em contraste, os protocolos inspirados nas teorias de Piaget eram livres desses ruídos. Tomou então uma amostra de alunos e aplicou os dois procedimentos. Outra surpresa! Comparados ao teste tradicional da secretaria, os protocolos de Piaget refletiam ainda mais a origem social dos alunos.
Nessa época, eu dirigia um projeto internacional de pesquisas (Programa Eciel) que incluía sete países latino-americanos. Tratávamos de aplicar testes de rendimento escolar (antepassados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos - Pisa) e descobrir que fatores se associavam a bons resultados. Além das analises convencionais, decidimos separar as perguntas de memória daquelas que demandavam manifestações mais elaboradas de raciocínio. Tabulando, veio o mesmo resultado: os pobres obtinham scores relativamente próximos dos alcançados pelos ricos nas perguntas de memória, mas distância aumentava com relação àquelas que mediam aplicação, raciocínio e análise. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não privilegia a memória.. Portanto, se substituir um vestibular muito tradicional, dará uma vantagem extra aos alunos que frequentam as melhores escolas. No panorama brasileiro, são predominantemente alunos de origem social mais elevada. A ideia de que seria uma prova que promoveria a igualdade social não passa de uma quimera. Eis o dilema. Se queremos uma educação melhor para o país, temos de sinalizar nos testes a direção do esforço esperado. Se a prova pedir raciocínio e análise, os alunos vão se esforçar para dominar essas competências. Se pedir para decorar, é isso que vão fazer. Portanto, o futuro da educação não pode abrir mão de provas que focalizem tais conhecimentos mais nobres - e não a memorização.
É verdade, para decorar fórmulas, reis da França, tabelas periódicas ou guerras púnicas, pobres e ricos estão em condições parecidas. Basta tempo para estudar e teimosia para guardar isso tudo na cabeça. Já as competências de ordem superior são muito mais difíceis de ser ensinadas. Portanto, sofrem muito mais as escolas piores, frequentadas pelos mais pobres. Em contraste, nas escolas dos alunos de famílias mais prósperas esses assuntos são privilegiados. Por isso, eles terão maior chance de obter bons resultados. É a natureza malvada validando a chamada Lei de Mateus: "A quem tem, mais lhe será dado". E agora? Se voltassem os vestibulares de decoreba, os pobres estariam mais bem servidos. Mas isso seria uma forma perversa de aproximá-los dos ricos, puxando para baixo o ensino de todos, já que as avaliações guiam o ensino. Não melhoraremos nossa lastimável educação sem provas que empurrem na direção certa. O que fazer: aproximar pobres e ricos ou promover conhecimentos de ordem superior? Não há como titubear. Nos testes, a prioridade tem de estar naqueles que empurrem para cima o ensino. Para atender aos imperativos de justiça social, o caminho é outro: melhorar a qualidade da educação nos níveis iniciais. Somente assim se pode reduzir a distância entre classes sociais, ou seja, puxando os pobres para cima. Aliás, para justificar essa política de qualidade, não seria necessário falar de vestibular.


Fonte: Veja, Editora Abril, edição 2271 - ano 45, 30 de maio de 2012.

5 de junho de 2012

A Importância da Alfabetização no Processo de Humanização dos Alunos

Escola não é lugar de treinamento para tirar boas notas, diz especialista.



O pedagogo Paulo Freire, no artigo “A Importância do Ato de Ler”, ressalta que é o ato de ler que possibilita ao homem a leitura crítica do mundo. Daí a importância da alfabetização. Apesar da expansão do ensino ocorrida a partir de 1950, quando a população brasileira que estava à margem foi incluída no sistema educacional, de acordo com dados da OEI (Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura), ainda vivemos um conflito quando as crianças chegam à escola, segundo a professora Maria do Rosário Longo Mortatti.
“As crianças vão para a sala de aula ansiosas para aprender a ler e escrever. Mas elas têm muita dificuldade para concretizar esse anseio. Por que o desejo se transforma em sentimento de fracasso, um obstáculo intransponível? Há um descompasso entre o que as crianças desejam aprender e o que lhes é apresentado. A escola oferece a aprendizagem do código escrito, não a possibilidade de participação transformadora no mundo público da cultura letrada. Assim, o aprendizado da leitura e da escrita se torna atividade sem sentido para os alunos”, explica a professora, que é livre-docente em Metodologia da Alfabetização e professora titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista/Campus de Marília).
Para a especialista, os problemas da alfabetização brasileira são antigos, mas assumem novos contornos no século XXI. “Por um lado, para a maioria da população brasileira, leitura e escrita continuam sendo atividades secundárias, facilmente substituídas por atividades nas quais a oralidade se impõe. As pessoas preferem, por exemplo, ver/ouvir telejornais, em vez de ler o jornal impresso.
Por outro lado, a escola pública está se tornando um lugar de treinamento para testes padronizados de programas nacionais ou internacionais de avaliação de estudantes e sistemas de ensino. O importante é que os alunos tenham ‘bom desempenho’, para que escolas, municípios, estados e o país alcancem boas posições nos rankings educacionais e sociais. Assim, o prazer de ler e de escrever tornou-se secundário, e o ensino perdeu seu espaço”, diz Maria do Rosário.
E como fica o professor nesse contexto? Não tão perto de seu dever de ofício e do direito de seus alunos, como deveria, do ponto de vista da especialista. “A aprendizagem depende do ensino. E ensinar é também fazer junto com o aluno o que ele ainda não sabe, mas pode e deseja aprender. O professor não deve se contentar em participar desse processo como ‘facilitador’, ou ‘espectador’, ou ‘treinador’”, ressalta.
Uma das soluções apontadas pela professora Maria do Rosário para tornar a alfabetização mais atraente é ler junto com as crianças, selecionando bons textos literários. E ela completa com um pensamento semelhante ao de Paulo Freire. “A leitura pode contribuir para o processo de humanização. A obtenção de bons índices de desempenho em testes padronizados não significa que os alunos estejam lendo e escrevendo, de fato. Se não houver apropriação crítica, leitura e escrita se reduzem a meras atividades escolares, que não contribuem para a transformação dos sujeitos e da sociedade.”

Fonte: http://www.portaleducacao.com.br/pedagogia/noticias/53222/a-importancia-da-alfabetizacao-no-processo-de-humanizacao-dos-alunos?utm_source=ALLINMAIL&utm_medium=email&utm_content=33744054&utm_campaign=Top%2010%20-%20pedagogia%20039&utm_term=__gci5.sbv.nm.lv9.gahl.h.qp.rmch5mcl.j.w.zsx.w.zyl.wb